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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

MARÍLIA DE DIRCEU ( CENA 06 )


Amadas e amados, bom dia.
Umas boas horas de sono para mim fazem milagres, escrevo estas rápidas palavras para vocês antes de pegar em mais uma complicada página da biografia do Edgar Allan Poe, devo sair hoje para resolver umas coisas na rua e já sei que o dia promete.

Não sei se seria adequado dizer que estou desempregado, pois a editora que por quatro anos se serviu dos meus traços não retorna minhas chamadas, apesar de terem dito que ainda há muitos livros para fazer. Estou zerado de grana, embora tenha algum para receber daqui a uns 45 dias, e tenho duas encomendas que ainda nem comecei a fazer. Estou meio agitado, preciso me organizar.
Me prometeram um adiantamento pela obra do Poe e até agora nada, nem retornam meus emails. Foda, né? Mas tenho certeza que vai dar tudo certo no final, se ainda não deu é porque o final não chegou. As artes prosseguem.

Hoje deixo vocês com mais uma cena de Marília de Dirceu.

Nos voltamos a falar depois do carnaval. Não sei quanto de vocês gostam dessa festa, mas eu não sou chegado. Por aqui a balbúrdia já começou desde a semana passada, um bloco ficou o dia inteiro na avenida principal, dava pra ouvir o barulho daqui de casa, que fica umas duas quadras a baixo. O que se viu depois foi uma sujeira horrível, garrafas quebradas no asfalto, preservativos usados, papel picado, serpentinas e sabe-se lá mais o quê. Fiquei com pena dos garis.

Cuidem-se e bom feriado a todos.




quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

FANART DE ZÉ GATÃO POR TÉO PINHEIRO.



Em meio a tantas porradas desferidas pela vida, intensificadas neste ano de 2014, surgem por vezes, alguns lenitivos. Homenagens como esta que recebi a alguns dias é um exemplo. Mais uma pinup de Zé Gatão, desta vez criada pelo talentoso quadrinista Téo Pinheiro.
Tive o prazer de conhece-lo nos eventos de quadrinhos que participei em Recife e de cara me dei conta de que estava diante de alguém muito habilidoso na arte e com muita garra para não desistir frente às barreiras, acima de tudo muito humilde e educado. Pessoas assim merecem todo meu respeito.
O Téo quadrinizou algumas histórias de terror para o Recife Assombrado (  http://orecifeassombrado.com/wp/ ) é só ir no site e conferir. Ele também finalizou algumas artes do Luciano Félix, outro grande das hqs nacionais, que só mesmo uma gigantesca injustiça ainda não permitiu que dividisse o topo com os hoje laureados nomes do quadrinho nacional.

As veze me vejo vacilando em meio ao vórtice, mas Deus sempre manda algumas mãos para impedir que eu me afogue de vez, a família, a esposa, uns poucos amigos e vocês também, amigos virtuais e invisíveis, com suas visitas, o que demonstram uma paciência sem fim comigo e gostam dos meus rabiscos, falo sem demagogia, podem estar certos.

E a você, Téo, meu muito obrigado, adorei a arte.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

TENTATIVA PARA A VEGETARIANA.



Prezados e prezadas, bom dia. Como puderam notar dei um tempinho nas postagens, mas foi mais para conceder, a quem fosse interessante, o tempo de ler o conto do universo Zé gatão, Cloaca Dos Mares, que, reconheço, ficou longo.
Mas voltando, as artes de hoje foram as primeiras tentativas que fiz de ilustrar a capa de um livro chamado a Vegetariana. Na versão abaixo a personagem está deitada sobre a sombra do observador numa tentativa de dar à coisa um tom surreal. Inclusive já postei um outro esboço a um tempo atrás.
Este livro, pelo que fiquei sabendo, foi um puta sucesso na sua terra de origem, a Coréia, tanto que virou filme. Depois de alguns sketches como estes, a editora, pressionada pela autora e mais uns tantos palpiteiros (pelo menos foi isto que entendi) optou por usar uma foto ao invés de uma pintura.
Mais uma vez trabalhei a toa, sem nenhuma compensação. Sei que isto faz parte do processo, mas comecei a refletir sobre estas questões neste último fim de semana; tive o prazer de assistir a dois documentários muito interessantes sobre dois autores que admiro muito, Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft, ambos gênios e influentes que viveram na merda. Lovecraft nem tanto, mas Poe é sabido que passou necessidades por demais. Os contos policiais e de terror que ele modernizou não lhe rendiam quase nada, eram muito bem aceitos pelo público em geral mas eram desprezados pela crítica especializada. Nenhuma novidade aí, os tempos de Poe eram muito complicados, mas o meu ponto é este: ele ganhou mais dinheiro como crítico literário, não exatamente com suas histórias.
Lovecraft foi mais ou menos parecido, as histórias que ele publicava nas revistas pulp lhe rendiam uma miséria, ele recebia um salário melhor como ghost writer.
Longe de me comparar a dois escritores ícones, mas não é a mesma situação que passo? Não sei quanto a outros artistas, mas eu não ganho nada (ou quase nada) com meu trabalho pessoal, para sobreviver eu tenho que ilustrar livros, desenvolver tomos de como aprender a desenhar e ainda assim são muito mal pagos. Desta feita tenho que me atulhar de serviço para ter grana que dê para pagar todas as minhas contas. Não sobra muito tempo para meus desenhos escapistas. Com relação ao valor pago por ilustração sei bem que tem vários especialistas dando dicas e tudo mais, mas se não aceito o que me empurram pela minha garganta não pago o meu aluguel e plano de saúde, nem faço compras no mercado.

Bem, amadas e amados, nem era minha intenção discorrer sobre isto aqui, uma palavra levou a outra e pronto: mais um desabafo. É que as editoras resolveram me deixar de molho neste início de 2014 e a barra tá pesando. Mas vai dar tudo certo no final.

Meu amigo e grande artista José Roosevelt sintetizou tudo muito bem na última mensagem que me mandou:
"Estamos aqui para dar ao mundo um pouco de beleza e não para receber glória e riquezas, que são passageiras e ilusórias".
E com esta máxima me despeço, contando com vocês para a próxima postagem.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A CLOACA DOS MARES (um conto de Zé Gatão escrito por Luca Fiuza e ilustrado por Eduardo Schloesser)

         

        Cinco dias haviam se passado desde que Zé Gatão embarcara naquele nojento navio mercante conhecido como Cloaca dos Mares. Em sua memória revia nitidamente o momento em que pela primeira vez pisara no sebento convés de madeira velha, cheirando a maresia e a peixe podre. Era em torno de meio-dia quando subiu a bordo.
O episódio com a hiena foi um fato inesquecível. Recordava-se vivamente de sua grotesca figura munida de um esfregão, fingindo limpar o piso encardido do convés. Sua risada irônica e sua voz desafinada ainda soavam nos ouvidos do gato enquanto a criatura vomitava palavras de escárnio
- Hee...! Carne nova na área! – Zé Gatão sentiu vontade de amassar aquela careta feia, mas com a prudência natural a todos os felinos em ambiente hostil retrucou de maneira que só a hiena pudesse escutar:
- O nome deste barco é sugestivo, hiena! Cê já abriu sua cloaca podre. Fica fria que ganha em saúde e conserva os dentes!
O felino taciturno notou um leve tremor no corpo da hiena. Sentiu que ela ia atacar, mas a chegada de um oficial a fez dominar-se a custo.  Desde aquele dia, o felino cinzento se manteve alerta. Embora não tivesse mais tido problemas com a adversária, sabia que as hienas eram seres sorrateiros e traiçoeiros. Ciente deste fato ficou preparado para o que desse e viesse.

Nos primeiros dois dias deixaram que ficasse sozinho em sua repugnante cabine, mas logo o imediato ordenou que o novo tripulante tivesse companhia. Assim, sem pedir licença, no fim do terceiro dia um enorme porco de couro curtido pelo sol adentrou abruptamente na cabine sem ao menos bater à porta. A audição apurada do felino cinzento já havia escutado de longe os pesados passos do suinoforme e sentido com antecedência o miasma pestilento de seu mau hálito que se tornou quase insuportável quando o resfolegante suídeo penetrou no espaço apertado de ar já viciado daquele local infecto.  O porco estava trajado com uma camisa encardida justa que um dia havia sido branca. A mesma continha com dificuldade suas carnes flácidas que pendiam em pregas. Uma calça preta igualmente justa parecia querer se romper principalmente na área anal. Botas pretas de cano longo, salto reforçado e um lenço vermelho amarrado na cabeça completavam a visão dantesca representada por aquela espantosa figura. Preso junto à vasta pança em uma bainha ricamente trabalhada se achava uma ameaçadora adaga de lâmina recurvada. Apesar do clima bizarro da situação, tudo que o felino taciturno sentiu naquele instante foi uma irritação crescente. Amigo da solidão estaria melhor senão fosse obrigado a conviver no mesmo espaço com aquele porco repelente.
         Mesmo tendo consciência de que na atual conjuntura seria impossível, alterar aquela situação abjeta, o felino cinzento não conseguiu conformar-se. O tal do porco por suas maneiras parecia ser um grande encrenqueiro e para evitar que o desgraçado quisesse cantar de galo, Zé Gatão resolveu colocá-lo sem tardança em seu devido lugar.
Antes que o abusado suinomorfo lhe dirigisse palavra Zé Gatão moveu-se de maneira rápida e inesperada. Sem dó meteu um murro violentíssimo no bucho enorme daquele desafortunado. Um ronco cavo e sufocado acompanhado de uma eructação fétida escapou da bocarra aberta do porcão.  Os olhos arregalados tinham um brilho de espanto e de dor atroz. Uma náusea forte tonteou Zé Gatão por um instante. Ainda assim, conseguiu aplicar no braço do marujo uma torção brutal virando-o à força de frente para a porta de modo a se livrar um pouco do odor acre daquela halitose maldita. Para impedir qualquer resistência, enlaçou o pescoço adiposo do pobre suíno apertando-o em uma gravata tão poderosa que a face carnuda do porco ficou imediatamente arroxeada.
- Quieto! Nenhum som ou te mando pro inferno. – Rosnou Zé Gatão ao ouvido de sua vítima aterrorizada. – A pressão no pescoço afrouxou o suficiente para que o porco pudesse voltar a respirar. Mas o seu barulhento arfar exalou uma fedentina que quase fez Zé Gatão vomitar. Exasperado atirou brutalmente o porco no piso de madeira apodrecida. Enojado, Zé Gatão proferiu entre dentes:
- Respire com a cara voltada pro chão, porco! Porra, você é um esgoto ambulante! A merda deste navio cheira melhor que você! – Exclamou o felino sentindo fortes contrações estomacais.
- E-eu...!
- Fecha a latrina, idiota! Que fique muito claro, já que vou ter que te aturar, você dorme na cama de baixo! Jogue agora tua adaga pela vigia ou enfio essa bosta no teu cu até o cabo! A partir de agora você é mudo! Não abra a lixeira aqui dentro! Mexa esse rabo e vá dormir! Se roncar te encho de porrada!  Se inventar moda eu te capo e penduro tua carcaça no mastro mais alto do navio! Estamos entendidos?! E vê se não peida durante o sono! Já basta aguentar teu fedor externo!! – Murcho como um balão furado o gordo recolheu-se a sua insignificância. Sempre tinha sido um sujeito durão e muitos marujos ali tinham medo dele. Sua força e ferocidade eram lendárias. Agora foi diferente. Não deu nem pro gasto contra aquele gato filho da puta. Acabou encontrando um osso duro de roer. Deitou encolhido na cama debaixo e logo o balouçar do mar fez com que caísse no sono. Incrivelmente o porco não roncou nem peidou. Apesar disto, Zé Gatão não conseguiu dormir. Estava tenso, sentindo que por suas próprias pernas entrara em uma grande arapuca.


Os dias foram se passando lentamente. A bordo do navio mercante Zé Gatão fazia de tudo. Lavou e esfregou o convés junto com a marujada, também junto com os demais ajudou a puxar o
Cordame, enfunando ou reduzindo o velame de acordo com a direção ou intensidade do vento. Esteve por uma manhã inteira no ninho do corvo
sondando o horizonte sob um sol causticante. Trabalhou na cozinha descascando batatas e controlando o cozimento da comida, em panelas enormes, que seria servida à tripulação. Carregou pesadíssimos caixotes de mercadorias retirados dos entrepostos localizados em algumas ilhas onde o navio aportou, acondicionando-os no porão da embarcação. Depois, o navio continuou seu trajeto em direção a terras distantes mais ao sul. Os dias eram quentes e ensolarados. As noites eram frescas e um belo céu estrelado fazia contraste com as águas escuras do mar. A quilha do barco cortando o meio líquido produzia uma espuma fosforescente, denunciando a presença de seres aquáticos microscópicos pululando em um caldo de vida elementar.
Ao fim de suas obrigações diárias, Zé Gatão gostava de ficar na proa do navio sentindo no rosto o vento salgado, observando a amplidão do oceano se perdendo na escuridão da noite. Ajudava a relaxar, embora não conseguisse de fato dormir e sim se deitar inquieto, os sentidos alertas, o sono extremamente leve. A hiena não criou mais problemas. Em diversas oportunidades trabalharam lado a lado. Não se olhavam e não se dirigiam um ao outro. No entanto, o felino taciturno sabia que qualquer hora a hiena mostraria suas garras. O porco com quem dividia a cabine se tornara tão servil que só faltava virar um tapete para que Zé Gatão limpasse os pés nele. Era outro de quem se podia esperar a qualquer tempo uma atitude traiçoeira.

Uma semana depois, aportaram em uma pequena ilha. De seu entreposto foram retirados grandes barris de rum que foram transportados para o navio em pequenos barcos de carga. O trabalho durou várias horas, envolvendo toda a tripulação sob a supervisão do imediato e de alguns oficiais. O capitão que até aquele momento nunca tinha sido visto fora de seu camarote, deu rapidamente o ar da graça para dar algumas ordens, recolhendo-se em seguida.
Cada barril era içado individualmente por cordas amarradas em torno dele. Era preciso muitos braços para realizar a tarefa hercúlea, mesmo com o auxilio de um sistema de cordas ligadas a roldanas. Os mais fortes integrantes da tripulação foram convocados. Havia um enorme e peludo gorila, um búfalo extremamente musculoso, a hiena, um grupo de chacais, o porco e é claro, o felino cinzento com a musculatura fortemente tensionada pelo enorme esforço, poderosa e trabalhada. De repente, uma das cordas rompeu, soltando uma das roldanas lá do alto. A mesma caiu e bateu violentamente na cabeça do búfalo, ao mesmo tempo, os trabalhadores se viram obrigados a soltar o barril cujo peso instantaneamente, centuplicou. Concomitantemente, tombaram estrepitosamente na água barril e búfalo. Ninguém moveu um músculo sequer para salvar o gigantesco búfalo que afundou como uma pedra. No ponto onde desaparecera podiam ser divisadas algumas borbulhas.

Segundos depois, uma única criatura se lançou amurada afora em um mergulho gracioso nas águas azuis do mar: Zé Gatão! Por que fazia aquilo? Nem mesmo ele o sabia. Não tinha nenhum vínculo de amizade com nenhum membro da tripulação. Seu objetivo era chegar ao continente. Ele só trabalhava ali. Quando desembarcasse procuraria esquecer que convivera com aquele bando de bastardos.
O poderoso felino afundou na água gelada, exatamente no ponto que o grande bovino desaparecera. Reunidos na amurada os tripulantes do navio, conhecido como Cloaca dos Mares, olhavam estupefatos, sem compreender a atitude do gato. Ali para eles não importava quem vivesse ou morresse! Só conseguiam egoisticamente olhar para o próprio umbigo. Os únicos que intimamente lamentavam todo aquele episódio eram o imediato do navio e a hiena. O imediato lamentava a possível perda de dois braços fortes e a hiena lamentava a morte estúpida de alguém a quem queria ter matado do modo mais brutal que sua mente perversa pudesse imaginar.  
- Lá adiante! Na água! Estão vivos! – Ladrou um chacal feio e cabeçudo cuja destra apontava freneticamente em uma determinada direção alguns metros distantes da embarcação.
- Recolham os dois! Já! Bramiu o imediato com um imperceptível suspiro de alívio.  
Prontamente, as ordens foram cumpridas e Zé Gatão e o búfalo desacordado foram resgatados enregelados, mas vivos. O felino taciturno e o búfalo foram conduzidos à enfermaria. O gato foi colocado em uma cama. Antes de se deitar, procurou se enxugar vigorosamente, não sem antes livrar-se das roupas encharcadas do banho de mar involuntário. Deram-lhe uma grande caneca de rum que sorveu com vagar. Deixaram-no descansar enquanto o médico, um velho bode marrom de barbicha branca dava assistência ao volumoso búfalo ainda mergulhado em profunda inconsciência. Medicou e enfaixou a cabeçorra da qual se projetavam dois chifres agudos. Usando técnicas apuradas conseguiu retirar dos pulmões do gigantesco bovino uma considerável quantidade de água salgada. Cogitou que aquela criatura formidável ainda vivia graças a sua incrível resistência física aliada a rápida intervenção de seu salvador.
As horas foram passando lentas e aos poucos o búfalo foi recobrando a consciência. Acordado ali deitado de barriga para cima, fitando o teto sem exprimir um único ruído. O médico resolveu não incomodá-lo. Zé Gatão conseguiu dar um breve cochilo, sendo logo despertado pela presença do imediato que a mando do capitão veio saber como estavam os dois únicos pacientes da enfermaria. Conversou com o médico e depois se postou ao lado da cama de Zé gatão. Indagou em voz baixa – Por que arriscou sua vida para salvar o búfalo? – O felino olhou com ar fatigado seu interlocutor.
- Não sei. Acho que foi um impulso.
- Em todos os anos em que servi neste barco e em outros nunca tinha visto ninguém fazer isto. É estranho...!
- Pra tudo há uma primeira vez. – Replicou o gato virando para o outro lado, mostrando claramente que a conversa se encerrava naquele momento. Soltando o ar pela boca em um sibilo meio contrariado, o imediato dirigiu uma série de perguntas ao búfalo que solenemente o ignorou. Refreando um feio palavrão que queria saltar de sua boca, perguntou ao médico quando os dois pacientes poderiam voltar ao trabalho. O bode velho disse que dentro de poucos dias poderiam reassumir suas funções. O imediato
retirou-se. A noite caiu. O médico alimentou seus dois pacientes e depois recolheu-se, deitando ruidosamente em seu catre miserável ali mesmo na enfermaria.


Na manhã seguinte, um sol radioso brilhou em um céu de poucas nuvens esparsas.  O azul do céu contrastava com o azul do mar mais escuro e profundo. Pequenas vagas de espuma branca se agitavam ao sabor do vento e uma esteira branca de matizes prateadas podia ser vista nas laterais e na popa do navio enquanto este singrava velozmente o vasto oceano em direção ao continente ainda distante.

Zé Gatão despertou revigorado. Fazia tempo que não tinha um sono tão tranquilo e reparador. Foi saudado com um caloroso bom dia pelo bom doutor e a fome que revirava seu estômago foi prontamente aplacada por um substancioso, quente e delicioso mingau trazido pelo médico solícito. O grande bovino na cama um pouco mais adiante teve o mesmo tratamento. No entanto, parecendo alheio ao que se passava, tomou silenciosamente o mingau com o olhar perdido como que mergulhado em um mundo particular.


- Obrigado, doutor. – Disse polidamente Zé gatão, enquanto sorvia com prazer o conteúdo de sua tigela.


- Alegra-me ver que você está com fome e com boa aparência. Seu físico e resistência são excepcionais. Inclusive o do búfalo ali. Nesta região as águas são extraordinariamente gélidas. Se vocês dois não tivessem sido recolhidos logo teriam morrido de hipotermia!

- Como é possível, doutor? Sempre soube que o clima desta área é quente e sendo assim, as águas poderiam até ser meio frias, mas nem tanto assim.
- É que por aqui passa uma corrente gélida vinda das regiões setentrionais. Cair na água é como uma sentença de morte que você fez por bem adiar.  
- Menos mal...! Como é seu nome, doutor?
- Me chamo Caprinus Cornus. E você?
- Zé Gatão. Muito prazer.
- O prazer é meu.
 Assim, no tempo em que ficou convalescendo na enfermaria do navio, Zé Gatão e o doutor Cornus se tornaram bons amigos. Discorriam sobre os mais variados assuntos e o médico ficou maravilhosamente surpreendido com a agudeza mental e os conhecimentos gerais do felino cinzento. Zé Gatão sorriu consigo. Todos sempre o viam a princípio, apenas como uma montanha de músculos brutal e estúpida. E até então, naquele microcosmo tinha precisado agir daquele jeito, se quisesse chegar vivo ao fim da jornada. Portanto, foi gratificante para o musculoso gato deixar de sê-lo por algum tempo e sentir que no meio daquela escória tinha encontrado um único
amigo. Dentro dessa premissa, perguntou a Cornus porque ele estava trabalhando em um ambiente perigoso como aquele. O médico com uma expressão desolada, contou que já trabalhara em uma cidade bastante próspera. Suas habilidades e experiência, o levaram ao auge da carreira. Tempos depois, foi chamado ao gabinete do mandatário daquela urbe. Este o convidou para assumir o muito bem remunerado cargo de médico particular do filho. Tal mandatário era um gordíssimo rinoceronte, governador incontestável da imensa metrópole. Um mês depois, o filho do poderoso indivíduo contraiu uma estranha e desconhecida doença mortal que progrediu rapidamente em poucos dias. Apreensivo, Cornus recomendou à família que permitisse a internação imediata do pequeno em um bem aparelhado hospital, onde poderia ter tratamento adequado. O pai se negou peremptoriamente, alegando que o conhecimento público da doença de seu filho, faria ruir a decantada imagem que o paquiderme construíra aos olhos do povo.
 A de um líder forte e infalível. Tanto os apelos do médico quanto os da chorosa esposa do paquidérmico governante foram em vão. Nem os gritos lancinantes de dor do pequeno doente ecoando em seu quarto luxuoso, nem a febre devoradora que o consumia, nem mesmo a proximidade do espectro da morte, modificaram a decisão férrea daquela orgulhosa criatura. Ordenou autoritariamente que o doutor Cornus tratasse de seu filho ali mesmo no suntuoso palácio, local de trabalho e moradia. Ele, o onipotente governador, providenciaria todo o equipamento necessário, gastaria o possível e o impossível para que seu amado filho fosse curado. O médico trabalharia só e passaria a viver em um quarto particular ao lado daquele onde definhava o pequeno rino em sua lenta agonia. Estava decretado! Cornus trabalharia diuturnamente tão somente para atender as mínimas necessidades do enfermo.
      Menos de uma semana depois, o pequenino estava morto. Na fatídica manhã do ocorrido, um valete do governador, um jumento de expressão abobalhada, retirou abruptamente o doutor Cornus do quarto do filhote, assim que o mesmo acabou de expirar e trancou o médico em seus aposentos. Sussurrando, recomendou que o surpreso doutor ficasse à espera até que o governador o convocasse. Por causa disto, os acontecimentos a seguir não chegaram ao conhecimento do velho bode. Tudo o que conseguiu ouvir através da porta de sua prisão foram os gritos estridentes da esposa do prefeito.
Durante toda a manhã, os uivos sofridos de uma mãe repentinamente subtraída do convívio de seu único rebento reverberaram pelas dependências do palácio, sacudindo os alicerces daquela agora trágica morada. O devastado governador, em um estado de deprimente confusão mental, convocou seus assessores a comparecer em seu gabinete de trabalho para uma reunião urgente e extraordinária. Devido a questões pessoais que a ninguém dizia respeito afirmou que se afastaria já da vida
pública e de seus deveres como governador. Espantados, os assessores perguntaram por quanto tempo o governador ficaria afastado. A solução mais imediata, na opinião dos atarantados funcionários era convocar o vice, que estava sempre viajando, a assumir sem demora governança da cidade. De repente, o enorme rino em um assomo de raiva, gritou, dizendo que para ele a cidade e todo o seu povo podiam ir à merda e que se virassem sozinhos, até a sua volta, quando reassumiria as rédeas. E disse mais: denotando profundo desdém, afirmou que o vice era um bosta n’água! Um idiota que não sabia tomar uma decisão sem antes consultar a mãe. Não! Ninguém assumiria seu lugar! Que a cidade ficasse à deriva como um barco desgovernado na tempestade! Que se fodessem a todos! Despachou seus assessores de forma truculenta! Conseguiu ainda dar um chute no traseiraço de um deles, que era um indolente hipopótamo, o qual ao cair com o impacto saiu rolando como uma bola. O governador retirou-se intempestivamente. Entrou em um elevador de dimensões titânicas que o conduziu aos aposentos particulares da família. Caminhou por um longo corredor bem iluminado e dirigiu-se a um determinado cômodo, seu amplo e ricamente mobiliado escritório pessoal. Então, trancou os enormes portais, que o isolariam de tudo e de todos. Aquele local antes tão agradável para saborear seu poder e suas realizações, muito poucas em prol de seus concidadãos, hoje parecia um túmulo escuro onde sufocava...sepultado pelo peso de preocupações e profunda melancolia.
Um silêncio de morte caiu sobre o palácio. No quarto do falecido, sua mãe o pranteava agora em amargo e silencioso desespero.  Carinhosamente, a esposa do governador abraçou o corpo inerte do filho adorado, tocando suavemente sua pele áspera. Era agora gelada ao toque, destituída para sempre do calor da vida. Repentinamente, a fêmea de rinoceronte levantou-se de um jeito maquinal, tendo antes colocado cuidadosamente o cadáver no leito, deixando-o como se dormisse tranquilamente e a qualquer momento fosse despertar com o feliz e inocente sorriso dos filhotes, ansiosos por desbravar os mistérios de seu ambiente doméstico. No entanto, o pequeno jamais despertaria, jamais estenderia de novo os braçinhos para ela! Nunca mais! Como uma boneca de corda acionada por mãos invisíveis lançou-se, dando arrancos em direção ao fundo do quarto. A fêmea repentinamente se deteve diante da estante, cheia de livros e brinquedos, cheia de recordações que agora giravam em sua mente em um alucinado torvelinho. Cada lembrança ia batendo em seu torturado cérebro como um martelo implacável. Como uma sonâmbula,  ativou um dispositivo secreto que fez a estante recuar e revelar uma passagem secreta, fortemente iluminada por lâmpadas potentes que acenderam assim que a passagem se abriu. Tal passagem levou-a diretamente ao escritório particular onde o marido havia se encerrado para meditar.
O pesado paquiderme se assustou com o inesperado aparecimento da esposa. E mais desnorteado ficou ao deparar com o olhar sombrio, o silêncio pesado e principalmente a acusação terrível que vinha sem palavras audíveis, queimando como um ferro em brasa, como que atirando o cadáver do próprio filho aos pés do alquebrado governante. O silêncio mortal foi quebrado pelo grito roufenho e alucinado do marido: - A culpa é do médico! Daquele bode maldito! Ele é o responsável pela morte de nosso filho! Guardas! Guardas! – Saiu dali como um furacão tropical! O miserável médico pagaria por seus erros com a própria vida! Seria morto e enterrado em uma das masmorras secretas localizada no subsolo do palácio e ninguém jamais saberia de nada! Apesar do ódio eterno que sua esposa dele teria daqui para frente, ela nada faria para provocar um escândalo. O preço seria muito alto e como ele, ela também gostava do poder e da boa vida. Com um estranho brilho nos olhos, a esposa do governador, após a saída do esposo, retornou à passagem secreta. Outro caminho a conduziu diretamente ao quarto do doutor. Ele deu um grito abafado ao vê-la assomar por uma abertura que se abriu em uma parede no fundo do aposento.
A fêmea pediu silêncio. Em poucas palavras, relatou os acontecimentos e o destino reservado ao desafortunado médico. Porém, disse que não permitiria tal injustiça. Daria fuga ao doutor. Ele se preocupou com as consequências de tal ato, mas a enorme fêmea o acalmou, afirmando que o marido em nome de seus mesquinhos interesses nada faria. Nem se atreveria a atentar contra a vida da própria esposa! Manter as aparências era mais importante! Até mais do que a sobrevivência do filhote deles. Ela agora o sabia! Deu ao doutor uma soma considerável e o dispensou, não sem antes agradecer por tudo que este havia feito por seu pobre filhote. Assim, o médico partiu a bordo do Cloaca dos Mares. Seu profissionalismo o tornou respeitado. E até agora não tinha tido problemas, a não ser os concernentes com a sua profissão. Zé Gatão observou que era sempre assim! O poder ficava sempre nas mãos dos que menos mereciam e aos bons restavam a dor, a miséria e a injustiça. Dr. Cornus concordou tristemente, mas ainda assim garantiu que no fim das contas teve muita sorte. Ficaram em silêncio depois deste breve diálogo. O médico ocupou-se com seus afazeres e o gato ficou escutando o som da faina da tripulação no convés. Estranhamente, o búfalo permaneceu fechado em obstinado mutismo, parecendo desatento ao que se passava à sua volta.

Tudo o que é bom dura pouco.  Após um detalhado exame, certo fim de tarde, o doutor Cornus avisou a seus dois pacientes que no princípio daquela noite lhes daria alta. Em razão deste fato, deixou a enfermaria e foi chamar o imediato. Neste ínterim, sozinho com o búfalo, Zé Gatão se surpreendeu quando o mesmo lhe dirigiu a palavra :


- Por que você me salvou?


- Não sei. Simplesmente não podia deixá-lo morrer.


- Em toda a minha vida ninguém havia feito nada por mim...nem mesmo meus pais.
- Para tudo há uma primeira vez.
- Sou grato.
- Esqueça isso.
- Você agora pode contar comigo para o que der e vier. Meu nome é Bubalino, mas sou mais conhecido como Buba. Quero que sejamos amigos.
- Por mim, tudo bem. Sou Zé Gatão.
Os dois se levantaram de seus leitos e trocaram um caloroso e meio desajeitado aperto de mão. Zé Gatão ficou pensando que incrivelmente, tinha conseguido mais um novo amigo em um lugar onde ele só esperava só encontrar inimigos. Tal fato, não deixou de intrigá-lo. Estaria aquele bovino gigantesco sendo sincero? Alguma coisa em seu íntimo dizia que sim.
Neste ínterim, o doutor voltou acompanhado do imediato, um gatarrão feio, de pelo amarelado, olhos esverdeados com um brilho magnético. Usava um lenço preto amarrado na cabeça. Dois brincos de ouro pendiam-lhe das orelhas pontudas. Seu corpo era musculoso, não de forma exagerada. Usava um colete preto e calças folgadas de um branco encardido. No cinto grosso de couro cru, trazia um cutelo e uma garrucha. Transmitia um ar de desdém misturado com velhacaria, mas pareceu sinceramente satisfeito ao ver o bom estado do felino taciturno e do grande búfalo. Elogiou o trabalho do médico e disse aos dois pacientes que tirassem aquele dia de folga. Porém, no dia seguinte deveriam estar prontos para voltar ao batente. Antes que o imediato se retirasse, o búfalo, para a surpresa de Zé Gatão pediu ao oficial para mudá-lo para a mesma cabine do felino cinzento. O imediato disse que não haveria problema e que eles mesmos podiam resolver o assunto entre eles. Após a saída do imediato, Zé Gatão e Buba também se retiraram, não sem antes agradecer ao médico. Sorrindo, o bom doutor disse que o procurassem na enfermaria se precisassem de alguma coisa. Subindo as escadas quase podres que conduziam até o convés, Zé Gatão e Buba foram conversando:
- Será um prazer, ter você ao lado, Buba! O fedor do suíno, unido ao péssimo odor reinante naquela cabine tem sido de lascar!  Mas acho que o puto vai criar caso. – Disse o felino, procurando dar a voz um tom sério, apesar de por dentro estar rindo só de pensar nos próximos acontecimentos.
- Ele que se foda, meu amigo! Aquele porco nojento pode ficar na cabine que eu dividia com um babaquara que quero ver pelas costas!  - Respondeu Buba com sua voz trovejante. – Não se importaram com os olhares hostis que lhes dirigiam vários elementos da tripulação, revoltados com o fato de terem tido que trabalhar dobrado durante a ausência dos dois novos amigos na lida diária do barco.
O porco estava acabando de enfunar as velas da popa com a ajuda de forçudos bovinos de carga, quase todos destituídos de chifres. O suíno se virou para ver quem chegava e sua expressão carrancuda se abrandou, assumindo um ar subserviente. Antes que pudesse pronunciar palavra, estonteados pelo miasma nauseabundo que exalava daquela massa de carne gordurenta.
O gato e o búfalo se acercaram do suídeo em questão. Bubalino dirigiu-se ao porcão em palavras curtas e grossas, emprestando à voz um tom arrastado e suficientemente baixo para que o ruído do mar, associado ao burburinho da marujada laboriosa impedisse que outros ouvidos, além dos do interessado escutassem o colóquio.
- Porco! Assim que você tiver uma folga, caia fora da cabine deste gato e vá amerdalhar minha antiga! Tem lá um cretino que vai gostar de dividir aquela pocilga com um verme como você!  - Inicialmente, o porco não entendeu bem aquelas palavras. Em seguida, em sua face bolachuda brilhou um lampejo de compreensão. Fechou a carranca e replicou:
- Quem faz a distribuição de pessoal é o imediato do navio. Temos que falar com ele! Coincidentemente, o imediato estava dirigindo alguns trabalhos, bem próximo de onde estavam os interlocutores. Não podendo deixar de escutar a conversa, aproximou-se e já foi logo dizendo:
- Autorizo que resolvam esta questão agora mesmo! Amanhã o búfalo e o gato vão dobrar o turno no convés! E você porco, seu turno será na cozinha! A porra da sua comida intragável vai ser dura de engolir amanhã! Vão! Sumam logo da minha vista! – Após isto, afastou-se e concentrou-se em seus afazeres. Seus berros e ordens bruscas faziam a tripulação pular como pipoca rebentando na panela.
Em silêncio, três animais francamente distintos penetraram naquela fétida cabine que fora o lar de Zé Gatão desde que embarcara naquela latrina flutuante. O porco estava trêmulo de raiva. Sem mais se conter, gritou:
- Pra que tenho que mudar daqui?
- Já não me expliquei? – Trovejou o búfalo já ficando irado.
- E você, felino? Não fala nada? Sempre fui leal! – Bramiu o pesado suíno com voz queixosa e esganiçada.
- Nunca fui com a sua cara, meu chapa! Por que não facilita as coisas pra você? Se manda daqui bem quietinho! – Disse Zé Gatão em um tom de conciliação um tanto forçado.
O porco em um átimo de fúria sacou a adaga e avançou sobre o felino taciturno. Antes que o gato esboçasse reação. Buba se colocou entre o felino e seu atacante. Em uma velocidade surpreendente para seu enorme tamanho, ajeitou um murro na boca que explodiu aquela bocarra, arrancando sangue e dentes, jogando violentamente  aquela gorda carcaça para trás. O corpanzil tombou ao solo estrebuchando. Não satisfeito, o búfalo levantou do chão a balofa e estonteada criatura como se ela fosse um saco de mantimentos. Aplicou um cascudo tão forte no cocuruto do infeliz suídeo que Zé Gatão pensou que aquele crânio se abriria e dele sairia uma caudalosa torrente de imundícies.  Semiconsciente, o porco foi atirado porta a fora junto com seus parcos pertences e uma adaga quebrada. Semidesperto e batido, o volumoso porco retirou-se indo apresentar-se ao novo e involuntário colega na cabine na qual o enorme búfalo habitara. Todo ele respirava vingança, mas isto é outra história. Voltemos à cabine de Zé Gatão, onde os dois amigos conversavam.
- Com você não tem mais, mais, hein? – Observou Zé Gatão com ar
divertido,
- Uma linguiça podre como aquela merecia uma coça sem tamanho. Até fui simpático com ele! – Disse Buba sorrindo.
- Tem razão. No seu lugar eu teria dado tal prensa nele que o filho da puta só ia servir como presunto! E da pior qualidade! – Os dois caíram na gargalhada.
- Estou precisando de um bom banho! – Falou de repente o felino, sentindo-se desconfortavelmente sujo.
- Vou falar com o doutor Cornus. Talvez ele possa ajudar! – Disse Buba com ar pensativo que fazia sua cabeçorra pender para um lado de modo significativo.
Dito e feito. Sabiamente, o bom médico receitou um banho de água quente e perfumada como parte do tratamento de recuperação de seu “paciente.” Conseguiu-se uma daquelas banheiras antigas de latão dourado que foi levada à cabine do felino. Momentos depois, este estava confortavelmente refestelado naquela água quente relaxante, sentindo como se toda a sujeira do mundo estivesse sendo expelida de seu corpo.
Duas semanas se passaram. A dura faina diária absorveu toda a concentração do búfalo e do felino cinzento fazendo com que quase esquecessem o incidente com o porco.  Ele sempre mantinha uma distância segura dos dois amigos. Quanto à hiena, envolvida com dois gorilas massudos em um trabalho de impermeabilização no porão do barco pouco era vista. No refeitório coletivo onde a marujada se reunia para tomar as refeições, a hiena comia depressa e desaparecia nas entranhas da nau, de lá saindo madrugada alta, completamente exausta em companhia dos dois gorilas. Todos de carrancas vincadas pelo esgotamento físico.
 Aos poucos, talvez devido a sua impressionante e inesperada façanha de salvar a vida do búfalo, Zé Gatão começou a granjear o respeito de muitos tripulantes que agora quando cruzavam com ele, costumavam saudá-lo batendo de leve na ponta dos gorros. Muitos passaram a buscar seu aconselhamento, ao notar as observações condizentes e ponderadas que o gato fazia em diversas oportunidades à mesa e durante o trabalho do dia a dia. Tal fato, não desagradou ao felino acinzentado. Devido a estas mudanças,
a atmosfera pesada que até então reinara a bordo daquele estranho navio foi se tornando mais amena. Já se podia ouvir uma gargalhada franca naquele meio antes repleto de ódios e desconfianças. Até amizades sinceras consideradas impossíveis até uma semana atrás surgiram ali. Fora alguns elementos ainda hostis, dentre os quais se incluíam o porco e a hiena, a vida do gato se tornou quase agradável enquanto o grande navio navegava inexoravelmente em direção a seu destino.
         Durante a longa viagem, o navio e seus tripulantes haviam tido dias quentes e ensolarados, As noites eram tépidas e estreladas. Naquela manhã em especial, o dia embora ensolarado, tinha o céu coalhado de nuvens que com o passar das horas foram se ajuntando. O velho e rabugento urso que era o cozinheiro do barco rosnou mais consigo mesmo que uma tempestade estava se prenunciando. Isto se deu em uma de suas raras aparições no convés. A oficialidade reuniu a tripulação e o imediato com o auxilio de outros oficiais subalternos, deu ordens para que se tomassem todas as providências necessárias, principalmente em relação à carga no gigantesco depósito abaixo. Ela devia ser bem amarrada com toda a segurança possível para que não sofresse danos durante a tempestade. Segundo o irritadiço urso cozinheiro, ia ser das grandes. O misterioso capitão mais uma vez não deu o ar da graça, deixando para o imediato e demais oficiais subalternos a organização dos trabalhos.
         Por volta das três da tarde podia se ver adiante do navio a escuridão de uma tempestade brutal que se avizinhava do Cloaca dos Mares. Coriscos iluminavam fantasmagoricamente a área escurecida por nuvens densas, plúmbeas, tempestuosas. Um vento frio afugentava aos poucos o calor da tarde.
         A todos os tripulantes foram distribuídos coletes salva-vidas e capas de chuva impermeáveis de cor amarela. Zé Gatão, assim como os demais, havia previamente envergado um grosso suéter preto, luvas de um cinza escuro de borracha acolchoadas por dentro. Como complemento, usava um gorro preto na cabeça do tipo normalmente usado por marujos em geral.  
A trovoada soava cada vez mais próxima e relâmpagos azulados iluminavam a noite antecipada que começava a envolver o navio em seu abraço fatal.

 A tempestade desabou furiosamente sobre o navio. Violentos vagalhões açoitavam o casco e iam crescendo cada vez mais, começando a invadir o convés com a força de uma torrente destruidora. Em uma vã tentativa de devassar a profunda escuridão que reinava em torno, foram acesas as lâmpadas a óleo dispostas em pontos estratégicos do convés. A luz fugidia de poderosos relâmpagos iluminava os marujos encharcados, presos a grossas cordas que não impediam os movimentos completamente, mas evitavam que a força da maré que corria de popa a proa, devido aos vagalhões selvagens os atirassem para a morte certa nas águas negras do oceano revolto abaixo. O barco estava desgovernado. Era inútil assumir o timão naquelas circunstâncias adversas. Portanto ele girava inutilmente e a nau seguia perdida ao sabor do vendaval.




Aquele bando de animais experimentado, acostumado às agruras da vida no mar estava aterrorizado. Nunca havia passado por uma tempestade tão titânica! Cada um sentiu intimamente que encontraria seu fim naquele mar tempestuoso, submersos na escuridão tenebrosa daquela falsa noite de espantos. Mesmo Zé Gatão, normalmente destemido, tremia, não só de frio, mas de terror impotente da horrível morte por afogamento que provavelmente teria. Seria sofrida, desesperadora! O mais incrível é que apesar de dominados por um pavor que chegava às raias da loucura, nenhum deles deu um único grito, derramou sequer uma lágrima, nenhuma queixa ou blasfêmia foi ouvida. Se o destino deles era morrer, ao menos, morreriam estoicamente em seus postos.         Um raio fabuloso iluminou fortemente o céu repleto de nuvens pesadas e escuras. O ribombar de um trovão arrasador, sacudiu o ar carregado de eletricidade viva. A chuva grossa desabava com força, açoitando os corpos tensos e enregelados da
marujada, totalmente dominada por um pânico mudo. Então, para o espanto geral, viram o capitão!  Estava no timão do navio. Curiosamente, até poucos segundos atrás não havia ninguém ali. Era um puma abrutalhado de ar altivo, pele prateada. O olho esquerdo era coberto por um tapa-olho de tecido escuro. O direito, de um amarelo intenso, estava fixo no horizonte nebuloso. Como os demais tripulantes, envergava uma capa de chuva amarela. Usava um gorro vermelho profundamente enterrado na cabeça. Com mãos firmes e seguras procurou dentro do possível, controlar o navio, mas era praticamente impossível mantê-lo na rota traçada. Ainda assim, sua presença imponente, de certa forma, trouxe certa tranquilidade aos tripulantes. Através de sinais ordenou ao imediato que providenciasse a redução do velame, no sentido de diminuir aquela desenfreada corrida mar a fora. De repente, de seus lábios contraídos escaparam sonoros acordes de uma velha canção. O som de sua voz clara suplantava o fragor da tempestade. Contagiada, a tripulação cantou com ele, Zé Gatão inclusive. Estupefato por apesar de nunca ter ouvido a canção, a estar cantando, o felino cinzento a entoou melodiosamente, como se tivesse crescido a escutando todos os dias. Repentinamente a canção congelou na garganta de todos. Uma vaga monstruosa atingiu o convés, arrastando um velho orangotango, um dos mais antigos integrantes daquela bizarra tripulação. A corda que o segurava havia se partido com um estalo sinistro. Arrastado de modo inexorável pela torrente que varreu o convés, um urro de morte foi o único e último som a escapar da garganta daquele desgraçado. Foi rapidamente tragado pela fúria das águas sem que ninguém pudesse salvá-lo. Os membros da tripulação estavam chocados. Pela primeira vez, aqueles corações insensíveis sentiram a perda de um companheiro de profissão, pois sabiam que qualquer um deles poderia ter o mesmo destino. 



                                        Por horas a fio, o Cloaca dos Mares errou 
pelo oceano, flagelado pela tempestade implacável. Por sorte, o navio tinha uma estrutura muito forte. Suportou o impacto dos vagalhões em seu costado sem afundar ou desmanchar-se.  Para não dizer que não houve nenhum estrago, boa parte do velame se rasgou, o mastro principal quebrou ao meio, tombando juntamente com velas e cordame no convés. Três marujos morreram no desastre. Mais cinco foram arrancados de suas posições no tombadilho pela força da maré, desaparecendo para sempre nas águas turbulentas daquele oceano rebelado pelas forças da natureza.

Quando finalmente o temporal cessou e as pesadas nuvens negras se dissiparam, o céu lindamente estrelado da verdadeira noite tranquilizou o espírito da marujada. Sem ruído, o capitão retirou-se e o imediato assumiu o comando. A âncora foi lançada no mar ainda agitado e o barco ficou parado, balouçando suavemente ao sabor das ondas. Todos estavam exaustos. A ordem foi para que todos se recolhessem. Quando amanhecesse, seriam contabilizados os estragos e o número total de mortos e feridos. Trabalhos de reparo seriam efetuados para que o navio não tardasse a prosseguir a viagem interrompida.
O dia amanheceu escuro e nublado. Um vento frio soprava sobre o tombadilho da embarcação parcialmente danificada. Turnos de trabalho foram organizados pelo imediato e cada grupo de marujos foi designado para uma série de tarefas. Os poucos feridos ficaram na enfermaria para onde haviam sido transportados desde o término do temporal no princípio da noite passada.
O mastro principal foi reparado precariamente. Se não houvesse mais tempestades poderiam chegar ao próximo porto para colocar o barco no estaleiro. Ali seria reparado com mais apuro. As velas rasgadas foram substituídas, os cordames rompidos trocados e os mortos foram reverenciados, tendo um solene funeral no mar. Compungido, o capitão reuniu a todos na proa e leu em voz alta uma oração condizente com o a ocasião. Pelos desaparecidos na tempestade do dia anterior, rogou-se que suas almas encontrassem a verdadeira paz em um mundo melhor, no qual a grande maioria já não acreditava. Ainda assim, os rituais de praxe foram cumpridos.
  Após um almoço frugal, em torno do meio-dia, os trabalhos foram reiniciados. O capitão depois da oração pelos mortos não foi mais visto. O imediato continuou dirigindo os trabalhos de reparos. Chamou uma turma composta por Zé Gatão, Bubalino, a hiena, o porco fedido e dois chacais. Ordenou que descessem ao porão e verificassem se a carga tinha sofrido muitos estragos e ainda reforçar as amarras para que se caso enfrentassem outra tormenta, o prejuízo não fosse tão grande.
Em silêncio desceram ao frio e escuro porão que exalava um cheiro forte de maresia. Ao longo das paredes havia lampiões a óleo. Os chacais acenderam cada um deles e uma luz fraca e bruxuleante iluminou as trevas daquele recesso até que bastante amplo. As mercadorias ali estocadas foram verificadas cuidadosamente. Ao final da inspeção constatou-se que tudo estava intacto.  De repente os dois chacais sacaram pequenas, mas mortíferas garruchas que traziam escondidas nas roupas. O porco empunhou uma nova adaga de lâmina recurva que trazia oculta no colete trabalhado que envergava. A hiena adiantou-se sorrindo maldosamente e disse:
- Chegou a hora do ajuste de contas, gato!
- Demorou! – Rosnou simplesmente Zé Gatão tirando a japona e o gorro que estava usando. Por baixo daquela indumentária de frio, o felino usava uma camiseta branca fina sem mangas que deixava à mostra seus enormes músculos trabalhados. A hiena também se livrou de sua japona e de seu gorro. Era um macho grande de musculatura maciça. Seu sorriso perverso deixava à mostra sua dentição poderosa, uma arma mortífera que não podia ser desprezada. Espantado e colérico, Bubalino esboçou um movimento, mas os chacais apontaram ameaçadoramente suas garruchas para a barriga musculosa do bovino.
- Pare! – Advertiram os dois canídeos em uníssono.
- Fica frio, Buba! É entre mim e o bafo de carniça, aqui! Vociferou o gato mestiço. 
 - Exato! Felino maldito! Vou te arrebentar de pancada e depois rasgar sua jugular a dentadas! A luta é só entre nós dois! Porém, eu quero espectadores! Quero que vejam que o fodão da área aqui sou eu! – A hiena espumava de ódio.
- Vamos para o centro do depósito, palhaço. Lá tem mais espaço e eu vou te mostrar que você é menos do que um meia-foda! – Retrucou Zé Gatão com ironia.
- Acaba com este puto, hiena! Depois me deixe enfiar o punhal no bucho deste búfalo do caralho! Ele me humilhou muito!  Os dois me humilharam! – Gritou o porco em um guincho estridente.
- Vou pensar no seu caso, suíno! Por enquanto fecha essa latrina! Fiquem de olho no bovino. Se ele fizer merda...queimem ele!
Todos se posicionaram no centro do depósito. Zé Gatão e a hiena ficaram girando em movimentos lentos um diante do outro. Ficaram se estudando, esperando o momento certo para atacar e defender-se. O clima estava tenso, a adrenalina ao máximo.


A hiena foi se acercando de Zé Gatão, reduzindo a distância entre eles. O corpo da fera oscilava em um movimento pendular, os punhos erguidos em uma postura de boxeador. Exalava ferocidade, musculatura sólida de uma criatura que estava acostumada a muitos embates. Um pensamento repentino passou pelo cérebro de Zé Gatão. Ele conhecia bem hienas. Em geral eram seres covardes e traiçoeiros. Fortes, mas não tinham têmpera de lutadores. Já havia brigado contra algumas e as achatado com relativa facilidade. Aquela hiena que tinha diante de si, porém, era diferente.
A momentânea distração cobrou um preço a Zé Gatão. A Hiena atacou veloz. Aplicou dois murros sucessivos contra o rosto do felino taciturno que explodiu em sangue. Estonteado, o felídeo cambaleou para trás. Emitindo um ronco cavo, a hiena saltou sobre seu oponente fazendo com que os dois tombassem no piso de madeira irregular do grande depósito. Os chacais e o porco sorriam. Buba impotente, de olhos arregalados via que seu amigo poderia ser morto ali mesmo diante de seus olhos.
Ao bater violentamente com as costas no chão, a dor lançou na corrente sanguínea de Zé Gatão uma forte dose de adrenalina, arrancando-o do torpor provocado pelos certeiros e brutais murros de seu adversário. Assim, sem que a hiena esperasse, o felino lhe deu um balão que a projetou direto sobre um monte de caixas que havia nas proximidades. O pesado corpanzil daquele animal quebrou a maioria das caixas de madeira danificando irremediavelmente seu conteúdo. Zé Gatão procurou se levantar enquanto limpava o sangue da face.
Quando a hiena se ergueu dos escombros, Zé Gatão já estava de pé. Imediatamente, o grande gato avançou sobre o seu opositor já aplicando um murro profundo em seu plexo solar que o fez dobrar-se para frente exalando o ar da garganta com tanta força que o som se assemelhava a um urro inarticulado. Ato contínuo, um poderoso soco de baixo para cima encaixou-se na mandíbula da hiena, não a tendo quebrado devido à sua excepcional constituição. Ainda assim, a hiena ergueu-se do solo como se fosse destituída de peso, em seguida, precipitou-se ao solo ruidosamente. Mesmo assim, ergueu-se. Uma baba grossa e sanguinolenta escorria-lhe da boca aberta. Fora de si, avançou como um trem expresso, disposta a atropelar o felino cinzento. Este recebeu o atacante com uma sequência devastadora de socos que faziam a cabeçorra da hiena ir da esquerda para direita sem controle, sangue e dentes espirrando, sujando a camiseta branca de Zé Gatão e manchando o pelame do peito nu da desafortunada hiena.

Ainda no ataque, Zé Gatão aplicou um socaço que atingiu o lado esquerdo da face da hiena, pegando bem em cima da orelha. Logo veio outro bem no meio da cara, quebrando o nariz da dita cuja. Ela caiu urrando alucinadamente de dor, estrebuchando no chão com as duas mãos cobrindo a horrível carantonha em extrema agonia.
Por um motivo que não sabia definir, o felino não continuou o ataque. Podia e devia aniquilar seu oponente que se vivesse seria um perigo constante. A hiena não teria pruridos em matá-lo se a situação estivesse invertida. Seu amigo Buba estava sorrindo. O porco e os chacais estavam pálidos.
Surpreendentemente, a hiena se ergueu mais uma vez. Sua resistência física era de fato impressionante. Como por encanto, uma faca afiada apareceu na mão direita daquele traiçoeiro hienídeo. Um sorriso malfazejo brincava em seus lábios ensanguentados. Do nariz quebrado escorria sangue e um muco grosso.
Desta vez, a criatura foi mais cautelosa. Começou a rodear sua presa lentamente, a lâmina mortífera da faca brilhando sob a escassa luz reinante.  
- Isto é covardia! Não pode! – Gritou Buba, em desespero.
- Calado, você! – Disseram juntos os dois chacais. – O porco começou a rir esganiçado, seu corpo balançando como uma gelatina gigante.
Em um movimento circular, a hiena brandiu a faca tentando enterrá-la na carne do gato. Zé Gatão, revelando-se dono de grande agilidade, evitava os golpes mortais. A hiena tinha enorme destreza com armas brancas. Suas investidas estavam se tornando perigosas, ameaçando a integridade do felino acinzentado. Este percebeu logo que não podia ficar se esquivando indefinidamente. Um tremendo golpe por sorte não lhe atingiu o coração. Somente um rápido passo atrás impediu o fim prematuro do mestiço de gato e lince. Com os olhos brilhando de puro ódio, a hiena arremeteu uma facada, em um golpe frontal que visava atingir em cheio o peito amplo de seu inimigo. O braço armado lançou-se à frente, rápido, certeiro e fatal. Zé Gatão bloqueou o ataque antes que ele atingisse seu objetivo segurando com a mão direita o pulso de seu adversário. Na mesma sequência, com a mão esquerda retesada deu uma pancada não muito forte entre o cotovelo e o antebraço, paralisando instantaneamente todo o braço e também a mão armada. A faca caiu inócua ao solo, enquanto do fundo da goela da hiena assomava um uivo pavoroso.  O felino puxou seu opositor para si, parecendo que o braço do infeliz seria arrancado do corpo. Joelhadas potentes atingiram as costelas do lado esquerdo daquela carcaça. As costelas foram pulverizadas pela violência do impacto.  Os estalos secos faziam par com os bramidos desafinados do pobre hienídeo.  Então, Zé Gatão largou aquela figura antes tão temível. A hiena caiu desarticulada. De suas mandíbulas destroçadas e sanguinolentas saiu um cicio perfeitamente audível naquele recinto fechado.
- Queimem eles...! Queimem! – Sem pestanejar, os chacais ordenaram que Buba se postasse ao lado de Zé Gatão para que fossem sumariamente executados em cumprimento das determinações da hiena detonada. O porco riu alto e disse que ia arrancar o escalpo de Zé Gatão para pendurar como um troféu na parede de sua cabine. Ao lado, colocaria a cabeça de Buba! Sua gargalhada encheu o ambiente juntamente com o mau cheiro de sua boca intestinal. Rindo cruelmente em tom baixo, os chacais apontaram suas garruchas para o peito de suas vítimas. Zé Gatão e Buba se olharam, lamentando apenas não poder torcer os pescoços daqueles canídeos idiotas e eviscerar aquele porco maldito antes de morrerem.


Repentinamente, sibilando no ar, punhais atingem as costas dos chacais matando-os antes que abrissem fogo contra suas pretensas vítimas. Tombaram para frente os dois algozes com um último e lamentoso ganido. O porco foi facilmente imobilizado por três gorilões forçudos. Um texugo de olhar invocado foi até os cadáveres dos chacais e retirou os punhais, limpando-os nas roupas dos mortos e guardando-os em suas bainhas que se localizavam cruzadas em seu peito.
- Sempre quis matar estes putos! Vou chamar o imediato.
Afastou-se bamboleando. 
Ninguém mais disse uma palavra. Só se ouviam os gemidos da hiena e som rascante de sua respiração difícil.  Buba foi ajudar Zé Gatão cuja face estava sangrando outra vez. O imediato chegou. Ordenou que todos se reunissem no convés. O capitão instauraria um inquérito e um tribunal seria composto efetuar um julgamento, onde seriam definidos culpados e inocentes.
Dentro do possível, todos os feridos foram medicados. Os chacais mortos foram deixados na popa cobertos com uma grande lona preta. A marujada reuniu-se em um espaço não muito grande para assistir ao julgamento. Zé Gatão, Buba, o porco e a hiena foram acomodados em um grande sofá estofado para que ficassem mais confortáveis e bem diante do corpo de oficiais que os julgariam. Zé Gatão estava com a cara meio inchada, cheia de curativos. Buba estava sem nenhum ferimento já que não lutara. O porco estava com a cara parecendo um bife batido, dano causado por uns sopapos que levara ao ser dominado, pois não quisera se render e ninguém teve pena de tratá-lo com mão pesada. Mas quem estava em pior estado era a hiena. Face arrebentada, alguns dentes quebrados, a boca coberta de pontos por dentro, olhos roxos bastante inchados, costelas esquerdas quebradas e enfaixadas. Braço direito paralisado, talvez permanentemente.
Como medida de segurança até que as coisas fossem esclarecidas, os quatro estavam solidamente acorrentados ao sofá.
O tribunal foi formado. Era composto só pelo capitão e seus oficiais. No centro da enorme e pesada mesa armada no convés  e protegida do sol por uma lona especialmente para aquela ocasião, sentado em uma cadeira maciça de madeira rústica estava o capitão, um puma alto e forte, de pelagem prateada e tapa olho. Ele presidiria os trabalhos. Ladeando-o estava acomodado em uma cadeira semelhante, o imediato. Pele amarelada, expressão facial carrancuda. Na mesma mesa, se achava também em uma cadeira do mesmo feitio das anteriormente citadas, uma pantera negra imponente. Era um macho de ar viril. Possuía um corpo esguio, de músculos bem delineados, mas sem exagero. Sua pele era lustrosa e bem cuidada, contrastando com a do imediato que era suja e manchada. Não havia jurados ou advogados. O capitão era o único e supremo juiz e júri. Sua palavra era a Lei.
Primeiramente, o capitão dirigiu-se a Zé Gatão que tranquilamente relatou que o imediato havia designado a ele, ao búfalo, a hiena, ao porco e aos dois chacais que descessem ao depósito para verificar o estado da carga, constatar se havia sofrido muitos danos após a tempestade. Lá embaixo, durante a verificação, ele e o búfalo foram emboscados pelos chacais, pelo porco e pela hiena. Esta última desejava vingança, em razão de uma troca de palavras ásperas com o felino taciturno, quando este embarcara no Cloaca dos Mares. Sob a mira das armas dos chacais e com a conivência do porco, Buba, o búfalo, foi contido. Então para acertar as diferenças, a hiena e o felino acinzentado entraram em combate. Zé Gatão venceu a luta. Só não foi morto junto com o búfalo graças à intervenção de membros da tripulação que apareceram na hora H.
Ao ser interrogado pelo capitão, Bubalino confirmou o relato de Zé Gatão. O oficial pareceu ficar satisfeito. De repente, em alta voz, o porco indagou se sua versão não seria ouvida. O capitão meneou a cabeça, se negando a escutar um novo relato dos fatos. O suíno quis reclamar, mas o imediato ordenou que se calasse. A hiena ficou muito agitada, tentou protestar, mas sua boca estava tão arrebentada que em lugar de sons articulados só conseguia proferir uns resmungos ininteligíveis. O capitão deu por encerrado o julgamento e pronunciou com voz forte e clara sua sentença.
- O gato e o búfalo estão livres! Eles foram as vítimas! O porco é considerado culpado como cúmplice! Condeno-o à morte por estrangulamento! Quanto a hiena, por ter sido a mentora deste plano sórdido, eu a sentencio a ser amarrada a um mastro e a ser chicoteada até a morte! Executem!
Zé Gatão e Bubalino foram soltos e em silêncio, se reuniram ao resto da tripulação. O capitão ordenou que todos assistissem a execução das sentenças. Isto, segundo ele, seria didático.
Os dois gorilas enormes que haviam trabalhado com a hiena naquele serviço no porão, ergueram o porco ainda acorrentado e o levaram para junto do mastro principal. O infeliz gritava, chorava, vociferava, pedia clemência, acusando a hiena de tê-lo aliciado. Seus guinchos desesperados enchiam os ares. Um dos gorilas veio por trás do suíno e colheu seu pescoço balofo com uma corda grossa. Aplicou toda a força, cingindo o gasganete do desgraçado em um aperto fatal. Os guinchos desesperados foram bruscamente cortados. Em seu lugar, um soluço bizarro, escapou da bocarra aberta de onde uma língua comprida e retesada se projetava como um dedo acusador. Os olhos se arregalaram como se fossem saltar das órbitas. A face cianótica e convulsa denotava o sofrimento atroz provocado pela repentina privação de oxigênio. Seus pulmões queimavam em brasa na ânsia de respirar!  O pesado corpo lutou violentamente contra a morte, mas seu destino já estava selado. O gorila aplicou mais força, puxando sua vítima para trás e depois se inclinando para frente, pesando sobre ela, descendo até quase tocar o solo.  O porco debateu-se freneticamente, mas seu algoz não o soltou. O suíno começou a estrebuchar. Após um longo arrepio, sua carcaça amoleceu. Estava morto.
 A hiena foi rudemente trazida até ao local onde seria supliciada. Foi solidamente atada ao último mastro da popa do navio. A dor que a acometeu enquanto era manietada era evidente, mas nenhum tipo de queixume escapou de seus lábios arroxeados. Não havia em seu olhar nenhum sinal de medo ou desespero. O que brilhava nele, embora já toldado pela agonia do sofrimento físico, era um ódio profundo e sombrio.  As costas cobertas por bandagens arfavam em ritmo acelerado, revelando a miríade de sensações que deviam estar revolvendo aquela criatura condenada em seu íntimo. O capitão em tom áspero determinou que a pantera negra aplicasse a pena máxima. Imediatamente, a fera cor de ébano se levantou. Retirou sua camisa amarela de mangas compridas folgadas, exibindo ao sol seu corpo bem definido. Retirou o cinto onde estava presa a bainha onde estava enfiado seu longo sabre de cabo ricamente trabalhado e se aproximou do hienídeo indefeso.  À grande pantera foi dado um látego, um terrível instrumento de suplício. É um tipo de chicote de corda ou couro, composto por um cabo rígido, de onde sai uma corda forte que se divide em três pontas. Em cada ponta há uma esfera de ferro. Em contato com a carne, a chicotada causa uma ferida. É profunda e extremamente dolorosa, justamente por causa das esferas metálicas.
Os corações dos presentes aceleram os batimentos, quando o braço implacável da pantera negra se ergue e em seguida desce o látego sem piedade nas costas expostas da hiena, repetidamente, impiedosamente. A cada impacto, a carne começou a se abrir em chagas profundas, o sangue vermelho esguichava e respingava no rosto do carrasco que incansavelmente prosseguia a brutal flagelação. O corpo do supliciado dava solavancos e seu grito de uma dor inominável, trovejava, um som agudo, ferino que parecia estar saindo das entranhas de uma alma penada a assar eternamente nas chamas do Inferno.  Mais um golpe vibrou naquela carne já em frangalhos.
Placas sanguinolentas eram arrancadas em tiras. O piso de madeira em volta estava tinto de um vermelho escuro. As pontas do látego cruel iam batendo e lacerando aquelas costas retesadas e esburacadas semelhantes a um solo lunar, coalhado de vulcões em erupção que em lugar de lava, expulsavam borbotões de sangue. Além dos urros alucinados da hiena, os silvos sinistros junto com as vibrantes pancadas do látego, compunham juntos uma canção macabra. Uma canção de morte.
 Antes que fosse dada mais uma lategada, o capitão mandou que a pantera parasse, fosse tomar água e ter um justo descanso na sombra. Sem comiseração, o capitão ordenou que jogassem um balde de água do mar nas chagas abertas do supliciado. A hiena semiconsciente, ao receber o conteúdo do balde nas costas em carne viva, soltou um bramido espantoso, o qual subiu rasgando a garganta, castigando as já combalidas cordas vocais. Urro este que demonstrava a profundidade do sofrimento brutal a que estava sendo submetida aquela criatura. Sua cabeça pendeu. Os músculos do corpo tensionados ao máximo relaxaram. Estava inconsciente. O capitão foi verificar pessoalmente se a vida da hiena tinha findado. Ao constatar que ainda respirava, mandou que o tribunal fosse desfeito. Que todos fossem almoçar e depois retornar a seus afazeres. A hiena ficaria amarrada ao mastro, onde ficaria entregue à própria sorte. Se morresse seria atirada ao mar. Caso vivesse, seria degolada e o cadáver seria atirado ao mar do mesmo jeito. Ordens expressas foram dadas para que ninguém chegasse perto do ser flagelado. Este não receberia água, nem alimento e muito menos assistência médica.
 O inclemente sol do meio-dia dardejou seus raios desapiedados em cheio sobre a criatura flagelada. A hiena estava toda dormente agora, de tanta dor que sentira, até então.  Ao despertar da benfazeja inconsciência em que mergulhara, lembrou-se da terrível situação em que se encontrava. A existência naquele momento lhe parecia um mar de sofrimentos sem fim. Sentia um calor abrasador, uma sede inconcebível. As costelas doíam como se tivessem agudos punhais enterrados na carne.  A cada hausto de oxigênio fresco que penosamente inspirava para encher os maltratados pulmões sentia também estes órgãos ardendo como se em lugar de ar estivesse respirando uma substância tóxica. Ao expirar o gás carbônico, a dor centuplicava. Forçou-se, porém, a ficar em silêncio. Não mais gritaria nem gemeria. Não mais!
Chegou o meio da tarde. De quando em vez, o imediato passava e olhava o corpo descaído do infeliz hienídeo. Nesta oportunidade, lhe aplicava um banho de água salgada nas costas arrebentadas. A inerme criatura dava um leve tremor, acusando que ainda conservava uma centelha de vida. A marujada que em meio a faina, dirigia um olhar de esguelha para o local onde a hiena agonizava, logo se esqueceu quase completamente dela. O único que tinha ainda em mente aquele ser trágico era Zé Gatão. Apesar de tudo, na opinião dele, teria sido melhor que tivessem matado a hiena a torturá-la daquela maneira.
Ao fim do dia, o sol descambou no horizonte. Com o fim do calor abrasador, o frescor da noite que se anunciava, trouxe alívio para a tripulação esgotada. Foi um dia duro. Os principais reparos haviam sido feitos e no dia seguinte poderiam levantar âncora e seguir viagem. O céu estava limpo, as primeiras estrelas começaram a brilhar no firmamento. O barco balouçava nas ondas calmas.
Antes da refeição da noite, o capitão reuniu a tripulação diante do grande mastro de onde pendia inerte a hiena martirizada. A pantera verificou que a hiena estava morta. Morrera provavelmente ao por do sol. Seu cadáver foi desamarrado e juntamente com o do porco e os corpos dos chacais foram envolvidos individualmente em lençóis, amarrados com forte cordame. Foram atirados ao mar sem contemplação, precipitando-se em direção ao fundo do mar escuro, devido a pesos atados a seus corpos.  Nenhum lamento ou oração foi proferida em nome daqueles mortos em particular. Desapareceram nas profundezas tão rapidamente quanto foram esquecidas suas existências. Só um membro de toda a tripulação não esqueceu e não é preciso dizer quem é.
Ao término daquele funeral que não houve, cada um se dirigiu a sua cabine no sentido de se preparar para o jantar frugal de toda a noite. Zé Gatão permaneceu sozinho na proa, olhando sem ver o oceano imutável. Os acontecimentos recentes causaram uma profunda impressão no espírito do felino acinzentado. Em sua vida já vira muita coisa, já enfrentara situações de todo o tipo, já lidara com seres das mais variadas tendências. Criaturas maldosas, violentas, tolas, boçais, maquiavélicas e muito poucas com algum traço de bondade. Quanto a sexo nem se fala. De acordo com sua natureza, comum em todos os felinos, tinha tido muitos amores, pouquíssimos sérios, que dirá duradouros.  Nunca vira um ser como o capitão do Cloaca dos Mares. Era determinado, destemido, tomando decisões rápidas e concernentes comandava o navio com firmeza sem ser despótico. Nunca o ouvira elevar a voz nas poucas vezes que dera uma ordem. Era respeitado por todos e também temido. O capitão não tivera escrúpulos ao decretar a execução da hiena e seus sequazes. Ele sabia que se tivesse tido clemência e conservado a vida daqueles animais mais desordem, sangue e morte ocorreriam. Sua autoridade estaria ameaçada. Por este prisma, aquele oficial experimentado não estava errado. Contudo, a frieza e crueldade do capitão ao lidar com insubordinados impressionaram até mesmo a Zé Gatão, tão calejado pelas agruras da vida. O fato é que a sombra de um fim como o da hiena e do porco pairava sobre a cabeça de todos. Era este o cerne da questão.
De repente, seu devaneio foi interrompido pelo aparecimento do imediato que veio transmitir um recado do capitão. Ele havia convidado o felino e seu amigo bovino para jantar  com ele e seus oficiais em sua cabine. Os dois tinham despertado o interesse do oficial que era dono do destino de todos eles. Zé Gatão respondeu que iria acompanhado de Bubalino. Foi dito que deveriam estar lá em torno de vinte e trinta. Em seguida, o felino retirou-se para avisar Buba. O que estaria o capitão tramando? Deu os ombros. Na hora certa descobriria.
Zé Gatão e Bubalino vestiram sobre camisetas limpas seus suéteres.  O de Zé Gatão era preto e o de Buba vermelho. Não trocaram palavra, mas um olhar mútuo traduziu um para o outro seus sentimentos melhor do que mil palavras. Aquele convite não era por acaso!
 Às vinte horas e vinte minutos, o felino taciturno e o búfalo Buba adentraram na cabine do capitão. Era um espaço amplo e bem iluminado. Um lauto jantar os esperava. O capitão saudou-os de maneira afável e pediu que tomassem os lugares indicados por uma plaquetinha com seus nomes, junto aos cálices de vinho de um cristal finíssimo e faiscante. Todos os convivas estavam em lugares pré-determinados e as plaquetinhas com o nome de cada um podiam ser vistas junto às respectivas taças de vinho.  Ali estavam o imediato e a pantera negra, localizados à esquerda do capitão. À direita do felino prateado havia alguém que Zé Gatão nunca tinha visto. Uma fêmea bem jovem, uma onça pintada extremamente sensual. Cabelos dourados que caíam em madeixas por seus ombros nus, onde a pele amarelada, cheia de manchas escuras contrastava com um belíssimo vestido de seda azul que deixava seu corpo torneado para lá de sedutor!  A boca bem feita era um irrecusável chamado ao prazer e seus olhos verdes hipnóticos eram envolventes. Os pelos da nuca de Zé Gatão se eriçaram involuntariamente, da mesma forma que o volume na área genital tornou-se evidente demais para não ser notado. Por isto, sentou-se rapidamente, cruzando as pernas em uma inútil tentativa de conter sua libido! As apresentações foram feitas. O capitão se chamava Anchorage, o imediato Césari, a pantera, o mestre de armas, se chamava Foscor, que significa escuridão.  A bela e jovem onça pintada se chamava Katka. Anchorage quis saber o nome de seus dois novos convidados. O felino taciturno disse seu nome e o búfalo em seguida disse o seu.
Postado atrás da cadeira do capitão Anchorage havia um papagaio verde de 1,40 m de altura. Vestia uma camisa azul clara de mangas cortadas, calça preta e um lenço vermelho amarrado na cabeça. Tal qual o capitão, usava um tapa olho preto sobre o olho esquerdo. Era o secretário de Anchorage e seu confidente. Também era o comediante oficial daquele seleto grupo. Chamava-se Flint. A um sinal do capitão, a ave serviu a todos e após servir um prato para si, sentou em uma cadeira em um ponto afastado dos comensais, logo, comendo ruidosamente sua refeição.
Enquanto saboreavam a deliciosa comida, conversavam animadamente. Anchorage revelou-se um individuo culto e bem articulado. Pela primeira vez, Zé Gatão e Buba sentiam-se realmente descontraídos. O vinho corria solto e pareceu aos dois amigos que sempre haviam convivido naquele ambiente refinado, esquecendo momentaneamente que eram simples marujos que trabalhavam arduamente, dormiam em uma cabine infecta, em camas desconfortáveis e comiam uma gororoba que era uma verdadeira bosta.
  Flint foi chamado. Seu vasto repertório de anedotas e casos pitorescos fez com que a assistência soltasse sonoras gargalhadas. Até Zé Gatão que não costumava rir com facilidade, não pode deixar de se divertir com a picardia daquela ave irreverente. 
A sobremesa foi servida. Era composta de doces e manjares variados. Para acompanhá-la, um vinho licoroso de sabor suave foi degustado. Para finalizar, tomaram um bom café forte e os machos fumaram um charuto. Katka não quis a sobremesa, limitou-se ao café. A todo instante a jovem felina trocava olhares com Zé Gatão. Sua voz aveludada e meio rouca, sua risada cristalina prendiam a atenção e concentravam todos os sentidos do grande felino nela. Com isto, na maioria das vezes a voz e a presença dos demais desapareciam e eram somente a ela que ele percebia. Um desejo poderoso rugia no interior de suas entranhas e o perfume que ela usava penetrava profundamente em suas narinas, um almíscar enlouquecedor que agitava todas as fibras de seu ser. Às vezes, respondia o que lhe perguntavam monossilabicamente e com muito esforço conseguiu manter o foco da conversação que entabulava com o capitão Anchorage e seus oficiais mais próximos.
Em um dado momento, quando o bule de café ficou vazio e os charutos se achavam amassados nos cinzeiros, a conversa amena foi interrompida pelo capitão, que pediu a palavra. Todos aguardaram em silenciosa expectativa. O oficial aprumou-se na cadeira e disse – Zé Gatão, eu gostaria de convidá-lo para ser o imediato deste navio e também convido Bubalino a fazer parte junto com você do meu círculo fechado de oficiais de minha confiança. Os dois amigos ficaram estupefatos. Antes que pudessem dizer algo, Césari se ergue de chofre, desembainhando sua espada e voltando-se ameaçadoramente para os presentes.
- Isso é alguma brincadeira?! Eu sou o imediato dessa porra!
- Não é mais. – Retrucou o capitão já de pé.
- Que sacanagem é esta Anchorage? Aloprou?!
- Você já fez merda demais, Césari. Por causa de sua displicência quase tivemos uma tragédia a bordo deste barco!
- Como é?!
- Preste atenção, meu caro. Você não atentou ao clima de hostilidade que foi se formando entre a hiena e o felino cinzento aqui presente, sem esquecer aquele porco que a esta altura está alimentando as caldeiras do Inferno. Você também nunca tomou providências para minorar o clima geral de hostilidade que grassava entre os membros de nossa tripulação. Você deu inadvertidamente condições para que a hiena armasse a emboscada ao mandar o grupo do qual ela e o felino acinzentado faziam parte descer ao depósito.
 - Se tinham rusgas entre si deviam ter me procurado. Eu...!
- Cala essa boca, Césari! Um imediato que se preza tem que conhecer a fundo seus comandados. Estar atento aos mínimos detalhes, prever o surgimento de problemas antes que aconteçam. E o principal! Ter o respeito e a confiança dos animais, coisa que você nunca teve!
- É mentira! Quem disse isso? – Vociferou o felino amarelento, erguendo a espada e avançando na direção de seu interlocutor.
- Ninguém. – Repentinamente, uma pequena pistola apareceu na mão do capitão. De braço estendido, apontou a arma para o ex-imediato e apertou o gatilho. O estampido seco pareceu um estrondo naquele ambiente fechado. O peito do gatarrão feio explodiu em sangue. Lançado para trás
pelo impacto, tombou ao solo como um pano molhado, velho e sujo. Lá ficou. Estava morto, esparramado como uma boneca quebrada. Tranquilamente, o capitão perguntou:
- Mais alguém contesta minhas decisões? – O silêncio reinante referendou a vontade do capitão Anchorage. Despediu-se do felino taciturno e do búfalo gigante com palavras rápidas. De repente, parecia transtornado. Disse que na manhã seguinte faria o anúncio das mudanças à tripulação. Zé Gatão e Buba voltaram para sua cabine profundamente impressionados com os acontecimentos daquela noite.
            De volta à cabine, os dois amigos se prepararam para dormir. Buba vestiu suas ceroulas brancas e colocou suas meias amarelas preferidas nos pés. Zé Gatão tirou o suéter e se deitou de camiseta sem tirar a calça de sarja azul que estava envergando, não sem antes tirar suas botas de couro negro lustroso, cano alto.
Minutos depois o enorme búfalo ressonava baixinho. Zé Gatão, no entanto, não conseguia conciliar o sono. Ainda trazia na mente a cena do capitão Anchorage matando friamente seu imediato. Embora depois, parecesse consternado com o episódio, o puma não teve compaixão por alguém que parecia ser amigo de longa data. Mas também o gatão amarelo não deu a impressão de que não fosse usar sua espada para atacar, possivelmente ferir e eventualmente assassinar seu superior em comando. Era uma situação que tirava o sono de qualquer um. Porém, o que de fato o estava deixando acordado era Katka! O cheiro de seu perfume permanecia em sua memória olfativa e o som aveludado de sua voz ainda ressoava em seus ouvidos. Ao sabor daquelas suaves lembranças começou a adormecer. Em seu sono, tinha a impressão que um corpo delicado se apertava de encontro ao seu. Sentiu um hálito perfumado e uma boca úmida, carnuda e sensual colando-se a seus lábios com a força da paixão. Abriu os olhos – Katka! Como entrou aqui? O que...!
- Sshuu! – Fez ela. Vim por você... – Completamente desperto, o felino cinzento observou a linda onça sob a meia luz de um lampião que era deixado costumeiramente aceso, já que Buba não apreciava a total escuridão. A felina estava reclinada sobre o corpo deitado de Zé Gatão. Suas madeixas louras estavam presas em um rabo de cavalo bem feito. Usava um top rosa e uma bermuda justa da mesma cor. Um sorriso sedutor brindou o espantado Zé Gatão e ela disse em um sussurrar bem junto a um dos ouvidos do gato que este se arrepiou como se uma corrente elétrica passasse por todo seu corpo.
- Vamos sair daqui... – Hipnotizado pelo olhar magnético daquela gata selvagem, o felino taciturno seguiu-a até o porão, onde ficava o depósito. Todos dormiam.  No fundo do depósito, Katka conduziu Zé Gatão a um compartimento secreto, onde eram armazenados fardos de algodão da melhor qualidade. Ali retiraram as roupas, ali se deitaram e ali se amaram. Primeiro de maneira selvagem! Depois mais lentamente, quase  que suavemente.

 O imenso prazer experimentado foi o resultado de um equilíbrio entre a selvageria dela e as diferentes formas de amar demonstradas por ele. Os modos civilizados de Zé Gatão, frutos do fato de ser um gato urbano, ainda que possuidor da força viril de sua metade lince, conduziram a onça a uma experiência nunca antes vivenciada. E ela trouxe ao felino acinzentado sensações que nenhuma gata, integrante de seus muitos amores conseguira provocar em sua alma livre como era a de todos os felinos. Momentos depois saíram do compartimento, se despediram com um rápido beijo e cada um retornou silenciosamente a seus próprios aposentos. O resto da noite correu sem novidades. Zé Gatão não pregou o olho.
Logo de manhã, o capitão reuniu a tripulação e anunciou a novidade. Zé Gatão seria o novo imediato e Bubalino seu assistente. A tripulação gostou e demonstrou sua anuência com vivas rasgados aos novos oficiais. Com a ajuda do experiente Buba, Zé Gatão se inteirou das atribuições de um imediato. O felino taciturno fez questão de conversar com cada membro da tripulação, ouvir seus problemas. Com isto, resolveu querelas evidentes e camufladas. Reorganizou os turnos de trabalho e com a concordância do capitão melhorou a comida que era servida aos marujos. O capitão quis que Buba e Zé Gatão se mudassem para as cabines dos oficiais, mas o felino cinzento objetou. Afirmou que ficaria na velha cabine para ficar mais próximo da tripulação. Buba quis permanecer com o amigo. Anchorage sorriu satisfeito, mas pelo menos na hora do almoço deveriam comer com ele em sua cabine. Zé Gatão e Buba aquiesceram.
À mesa, saboreando um delicioso almoço na companhia do capitão, da pantera e da sensual onça pintada, Zé Gatão ouviu revelações importantes.
- Sabe por que tive que matar o Césari? Descobri que ele estava arquitetando minha deposição do posto de capitão. Estava mancomunado coma hiena. Eles me matariam, a hiena assumiria o posto de imediato e eles transformariam este navio mercante em um navio pirata. Já fui pirata em minha juventude e Césari já estava comigo desde esta época. Ele nunca se conformou por eu ter mudado de atividade.
 - Você é muito esperto! – Observou Zé Gatão cheio de admiração por aquele felino altivo.
- Nem tanto! Foi Flint quem descobriu tudo e veio me alertar. Sempre foi um bom amigo.
- O que fez do corpo de Césari?
- Logo depois que vocês saíram eu o expeli para o mar por uma abertura secreta aqui mesmo nesta cabine.
- O que vai dizer à tripulação?
- Nada. Ninguém vai perguntar. Não gostavam dele, mesmo.
Anchorage piscou o olho bom para Zé Gatão com ar divertido e indagou:
- Como foi a noite?
- Muito boa.
- Gostou?
- Adorei.
- Desafogou?
- E como!
Anchorage se voltou para Katka e perguntou:
- E você?
- Não imagina?
Os três começaram a rir.
- Felinos são assim mesmo. – Sussurrou Katka. Zé Gatão e Anchorage concordaram ainda rindo.
 Uma semana depois o navio ancorou no grande porto na cidade de Litoraneum. O barco foi colocado no estaleiro e o capitão pagou o salário da tripulação, pedindo que voltassem a se reunir no porto para embarcar dentro de vinte dias. Todos estavam juntos saindo do estaleiro. Zé Gatão disse que não embarcaria. Preferia ficar em terra firme. O capitão propôs que todo mundo se reunisse em um bom restaurante para comemorar o sucesso da viagem apesar dos pesares. Foi logo dizendo que ele pagaria o almoço. Ninguém objetou.
Não havia mesa mais animada do que aquela onde se reuniram os tripulantes do grande navio mercante conhecido como Cloaca dos Mares. Fizeram brindes, gritaram hurras, Flint divertiu-os com suas piadas picantes. Então, o capitão Anchorage ergueu um brinde a Zé Gatão. Sua presença havia mudado para melhor o clima no interior da nau. Aqueles animais brutalizados e agressivos aprenderam que havia algo mais, que poderiam ser amigos e confiar uns nos outros. O felino taciturno também aprendeu algo. Entrara no Inferno e inesperadamente descobrira o Paraíso.
Ao término da alegre refeição, o felino cinzento despediu-se de todos, abraçando a cada um deles. O altivo capitão despediu-se com um abraço fraterno. Bubalino abraçou o amigo felídeo com lágrimas nos olhos e Katka deu um adeus inesquecível que consistiu em um longo e apaixonado beijo na boca cingindo com seus braços compridos o maciço corpo do gato.
Zé Gatão então partiu, sabendo que deixara para trás valorosos amigos.
                      

                          ZÉ GATÃO
UM FELINO MESTIÇO DE GATO E LINCE LUTANDO PELA SOBREVIVÊNCIA! PRESO A BORDO DE UM ESTRANHO NAVIO MERCANTE, CONVIVENDO COM A PIOR ESCÓRIA QUE JÁ NAVEGOU PELOS MARES!
          CLOACA DOS  MARES  

            
UM CONTO DE LUCA FIUZA.
MAIS UMA AVENTURA DO PERSONAGEM DE EDUARDO SCHLOESSER.
ILUSTRAÇÕES: EDUARDO SCHLOESSER.
INÍCIO: 17 DE NOVEMBRO DE 2013.

TÉRMINO:  30 DE DEZEMBRO DE 2013.

UMA GRATA SURPRESA E UMA PEQUENA DECEPÇÃO

 Boa noite a todos! Antes de entrar no assunto, uma satisfação aos que sentem simpatia por minha arte e pessoa, esses que torcem e oram por ...